Era uma tarde soalheira e com uma
temperatura bem agradável, que convidava a um passeio na praia. Apesar de ainda
estarmos em Abril a Lagoa de Albufeira já tinha um razoável número de pessoas a
aproveitar aquele solinho tão prazeroso.
Metade da “população” andava na
água, umas 150 pessoas que não procuravam o banho mas sim outra coisa. Pelos
seus gestos tão familiares percebi que este ano a lagoa estava fértil em
bivalves. Dentro de água, tacteando a areia, iam recolhendo o berbigão com uma
facilidade incrível. Só assim se justificava o enorme saco de rede que vi
passar perto de mim e que calculei, pela dificuldade demonstrada pelo homem de
meia-idade que o transportava às costas, ter pelo menos 20 kilos.
Tinha montado o meu “barraco”
fazia mais ou menos uma hora. Lá não faltava o meu indispensável chapéu de sol,
a toalhinha de praia e a mochila, onde trazia alguma coisa para beber e uma
sandes de presunto para “matar o bicho”.
Ainda me senti tentado a
juntar-me aos “mariscadores” de fim-de-semana, mas deixei-me estar na toalha
apenas a contemplar aquele quadro, onde famílias inteiras, entusiasticamente, recolhiam
uma grande parte da riqueza que este ano a Lagoa tinha tão generosamente disponibilizado.
- Hoje não, que não tenho quem me
olhe pelas coisas – pensei eu, tentando me conformar com a ideia.
Não muito longe de onde eu estava…
talvez a uns 20 metros… estavam duas senhoras na casa dos trinta e poucos anos
acompanhadas de um bebé, que parecia querer, pela arte de bem gatinhar, percorrer
todo o vasto areal.
Nas suas mais audazes incursões, afastava-se
uns 5 metros da mãe e amiga (ou familiar pois não consegui perceber ao certo
que laço havia entre as duas), parava por uns instantes… olhava para as duas e
retornava “a casa”, num gatinhar bastante coordenado e revelador de uma enorme
experiência e traquejo.
Quedei-me a observar o petiz por
vários minutos.
Com uma lógica que só ele podia
explicar, foi fazendo os seus passeios pela areia, variando sempre na direcção,
como que se estivesse a preparar para se aventurar mais além dos seus confortáveis
cinco habituais metros.
Num dos seus regressos ao ninho
materno pude verificar que já se conseguia empinar sozinho, trepando nas costas
da mãe, que estava entretida a falar com a sua companhia feminina.
Foi nessa altura, que senti
aqueles olhos claros a olhar na minha direcção.
No meio de uns “dáh dáh”, que
percebi serem-me dirigidos, assim ficou naquela posição erecta durante dois ou
três minutos.
Eu, babando pela atenção
demonstrada, acenei-lhe e armei o meu mais ternurento sorriso.
Surpreendido com o meu aceno,
fixou intensamente o seu olhar no meu gesto e ali permaneceu imóvel.
Foi então que substitui o aceno
por um gesto de mão a convidá-lo a juntar-se a mim e ele, com um querer
incrível, inicia o seu gatinhar na minha direcção.
Franzi o sobreolho e o sorriso
alargou-se. O sacana do miúdo, em “passo” lesto, aproximava-se rapidamente do
meu poiso, isto tudo sem tirar os olhos de mim e sem olhar para trás na
direcção da mãe, que a meio da viagem tinha deixado de conversar com a amiga, para
exclamar de forma bem audível e entusiasmada – olha, olha… o Rafael vai na
direcção daquele senhor!
A dois metros da minha toalha o Rafael parou.
Mantendo a mesma posição (de
gatas), ficou uma vez mais a olhar fixamente para mim.
Não pude resistir e num gesto de
desafio coloquei-me na toalha também de gatas e não tirei os olhos dos olhos
dele.
Após dez segundos e um sorriso de
encher a alma de qualquer mortal, fez o percurso que lhe restava até chegar a
poucos centímetros da minha cara.
Foi então que eu, lentamente,
aproximei a minha cabeça da dele até ficar a escassos centímetros… e ele… num
movimento que certamente não lhe era desconhecido, dá-me uma senhora “turra”,
que me surpreendeu por não estar nada à espera daquela reacção.
Na toalha da mãe estavam agora duas
espectadoras, que gargalhavam e riam com a presença de espirito do Rafael. E eu,
ainda a refazer-me da surpresa, engendrava uma maneira de me “vingar” daquele “cobarde”
ataque.
Voltei a aproximar a cabeça… e
recebi igual tratamento, mas desta vez, por já estar à espera, agarrei-me à
cabeça e simulei uma dor imensa acompanhada de uns tímidos “ais”.
Embora surpreso ao início o Rafael
rapidamente entendeu a brincadeira e num riso crescente, foi repetindo o gesto
vezes sem conta, evidenciando que eu o tinha conquistado.
Ficamos “amigos” logo ali e
quando a brincadeira começou a ficar gasta, sentou-se junto a mim e recomeçou o
“namoro” com os olhos.
- Queres comer? – lembrei-me eu
de perguntar, sem me recordar que somente tinha uma sandes de presunto na mochila.
Visivelmente atrapalhado com o
meu esquecimento, tentei desviar a sua atenção da minha mochila, mas
infelizmente sem muito sucesso.
Agora aqueles lindos olhos
cobravam-me a bolacha ou o biscoito, que dei a entender ter para lhe dar.
- Tou tramado… como me vou sair
desta agora? – pensei eu olhando na direcção da mãe, que percebendo o meu “pânico”
se apressou a chamar o Rafael para junto dela.
Mas o puto não queria sair dali…
e agora?
Bem, não tinha outra solução e
antes que o riso desse lugar ao choro, coloquei-me de pé e segurando nas suas
mãos fui ensaiando uns passos na direcção da mãe, o que ele fez de maneira
muito competente, demonstrando que as suas pernitas já tinham a firmeza
suficiente para outros passeios, para além daquele que o trouxe até mim.
Só bem perto do local onde estava
a mãe é que vi estampado no seu rosto uma enorme expressão de admiração. Pelos
vistos o Rafael nunca tinha feito aquilo.
Bem, nem imaginam como fiquei
inchado. Sem querer tinha colocado o miúdo, embora com o meu apoio, a dar os
primeiros passos. Mentalmente exclamei um saboroso “que fixe pá!”.
Passei o testemunho… e recebi da
senhora um entusiástico “obrigado… obrigado!”.
A mãe aproveitando a minha deixa e
querendo reivindicar também algum mérito, continuou a testar o Rafael durante
mais uns largos segundos, até que ele, achando que já era exercício a mais, se
sentou finalmente junto da toalha da mãe e recomeçou a olhar-me com os seus
fascinantes olhos.
Informei a mãe de que ele devia
de ter fome e tentei desculpar-me da melhor maneira possível, por não lhe ter
dado nada, visto não ter comigo nada “comestível” para a sua tenra idade.
A senhora mostrou-se compreensiva
e esforçou-se por me sossegar, dizendo-me que dentro de 15 minutos iria lhe dar
um iogurte e duas bolachas.
Achando-me já a mais naquele
contexto familiar, inclinei-me para beijar a testa do Rafael e despedi-me da
mãe e da outra senhora.
No regresso à minha toalha ainda
me virei por duas vezes para ver o que o puto estava a fazer e das duas vezes
reparei que continuava com o olhar fixo em mim, mas agora já com uma expressão
a roçar o choro e de partir o coração.
A mãe para o distrair resolveu
antecipar o iogurte, o que veio a revelar-se o suficiente para que ele
rapidamente procura-se outras paragens, buscando novas aventuras com o seu incessante
gatinhar.
Mais aliviado e desculpando por
completo a sua “traição”, veio-me à memoria o meu filho Daniel, que quando
tinha a mesma idade procedia de maneira semelhante, mas com uma pequena diferença,
ele só se deslocava para toalha alheia quando via alguém a comer algo, uma
bolacha de preferência e depois colocava aquele olhar completamente
irresistível, do género “Gato das Botas do Shrek” e com isso conseguia a almejada bolacha,
fazendo com que eu e a mãe nos desdobrássemos em incontáveis agradecimentos e
pedidos de desculpa por tal “leviano” comportamento.
A tarde chegava ao fim e pela
posição do sol atrevi-me a adivinhar que já passava das 19 horas, o que
comprovei depois de consultar o telemóvel. Eram exactamente 19:12 quando
resolvi começar a recolher as minhas coisas.
O Rafael parecia estar bem, tinha
acabado de vir da água e vinha embrulhado numa toalha de praia.
Vendo a mãe a olhar na minha
direcção aproveitei o momento para num aceno me despedir deles. A mãe retribuiu
o gesto e pegou no bracito do miúdo para que ele fizesse o mesmo.
No caminho para o carro ainda olhei
mais uma vez na sua direcção e ai sim, sem verbalizar, despedi-me do puto –
Adeus Rafael… ou quem sabe, até um dia destes!
Johnny Sunshine, 22 de Abril de 2013